Ao longo dos últimos anos, discussões em torno do consumo de carne e da pecuária têm se intensificado, ganhando espaço nas mídias, em políticas públicas e em diretrizes alimentares. Entretanto, um grupo expressivo de cientistas decidiu trazer à tona uma visão mais equilibrada sobre o tema. A Declaração de Dublin sobre o Papel Societal da Pecuária, assinada por mais de 1.200 pesquisadores ao redor do mundo, e a subsequente Chamada para Ação de Denver, representam uma tentativa de recolocar a ciência no centro das decisões sobre alimentação, sustentabilidade e saúde pública.
Um chamado à razão
A declaração de Dublin foi originada durante a Cúpula Internacional sobre o Papel Societal da Carne, em outubro de 2022, com o intuito de alertar sobre os riscos de decisões baseadas em visões simplificadas, ideológicas ou desconectadas da totalidade da evidência científica. Seus signatários defendem que os sistemas pecuários são complexos demais para serem tratados com reducionismo, e que sua reformulação deve se basear em ciência rigorosa, considerando aspectos nutricionais, ambientais, socioculturais e econômicos.
Com o tempo, os alertas evoluíram para uma demanda mais urgente. Durante o segundo encontro, realizado em Denver em 2024, os cientistas reforçaram que não bastava mais alertar. Era hora de agir. Na chamada para ação lançada nesse encontro, líderes políticos, profissionais da mídia e tomadores de decisão foram conclamados a se alinhar com o corpo de evidência disponível, escutando com atenção as comissões científicas e integrando múltiplas perspectivas em políticas robustas e eficazes.
Críticas às diretrizes alimentares atuais
Um dos pontos mais enfáticos da publicação está relacionado às diretrizes alimentares globais. Segundo os autores, há um excesso de prescrições que frequentemente não levam em consideração a cultura, a economia e a autonomia alimentar das populações. A crítica à “Dieta da Saúde Planetária”, proposta pela Comissão EAT-Lancet, exemplifica esse problema. Antropólogos apontaram que tal modelo ignora as práticas alimentares tradicionais, transforma a saúde em questão de responsabilidade individual e desconsidera desigualdades estruturais nos sistemas alimentares.
Os editores da publicação propõem, como alternativa, o conceito de Mesa de Nutrição, um modelo mais respeitoso com as necessidades e escolhas individuais. Esse paradigma reconhece o valor de alimentos densamente nutritivos, inclusive de origem animal, quando escolhidos de maneira consciente, variada e livre de industrializados ultraprocessados.
Pecuária e meio ambiente: para além dos clichês
Uma das críticas recorrentes à pecuária diz respeito ao seu impacto ambiental, especialmente em relação ao uso da terra e à emissão de gases como o metano. No entanto, os artigos reunidos nesta edição especial destacam que essa narrativa é frequentemente simplificada. A presença de rebanhos ruminantes bem manejados pode, na verdade, contribuir positivamente para a regeneração do solo, o controle de incêndios e o sequestro de carbono. Herdades bem conduzidas desempenham papel ecológico semelhante ao de herbívoros selvagens, favorecendo a biodiversidade e o equilíbrio hidrológico.
Os autores reforçam também a capacidade de animais de converter subprodutos agrícolas e gramíneas não comestíveis em alimentos altamente nutritivos, o que os torna peça-chave na segurança alimentar global.
Ciência, ética e comunicação
Outro eixo abordado com profundidade é o papel da tecnologia na pecuária moderna. Métodos como seleção genética, edição gênica, inteligência artificial e manejo de precisão podem representar avanços significativos em sustentabilidade e produtividade. No entanto, o acesso desigual a essas tecnologias, especialmente em países de baixa e média renda, resulta em oportunidades perdidas de melhorar o bem-estar animal, reduzir emissões e combater doenças.
Apesar do potencial, a adoção dessas soluções ainda encontra barreiras regulatórias e desconfiança pública. Por isso, os autores defendem que cientistas devem se tornar comunicadores mais eficazes, explicando suas descobertas de forma transparente, acessível e empática. Interessantemente, eles destacam que produtores rurais são frequentemente mais confiáveis para o público do que os próprios cientistas, o que sugere a necessidade de novas estratégias de engajamento social.
Um convite ao debate
O texto que embasa a Chamada para Ação de Denver não propõe respostas definitivas, mas defende o valor do debate e da dúvida. Seus autores reforçam que a ciência avança mais ao questionar do que ao dogmatizar, e que decisões sobre o futuro da alimentação humana não devem ser pautadas por ideologias, mas por uma compreensão profunda, multifacetada e honesta da realidade.
Em um momento em que as escolhas alimentares se tornaram bandeiras políticas e símbolos de identidade, essa visão equilibrada e cientificamente embasada é mais necessária do que nunca. O papel da carne na sociedade — seja na nutrição, na cultura ou na ecologia — precisa ser discutido com base em dados, não em slogans.
Fonte: https://doi.org/10.1093/af/vfae041