Não trate crianças com estatinas
A carta ao editor publicada no Arquivos Brasileiros de Cardiologia com o título “Não trate crianças com estatinas”, escrita por David M. Diamond, Uffe Ravnskov e Michel de Lorgeril, levanta um importante alerta sobre a crescente medicalização de crianças diagnosticadas com hipercolesterolemia, especialmente a forma familiar (HF). O conteúdo da carta contesta a prática de prescrever estatinas — medicamentos amplamente utilizados para reduzir os níveis de colesterol — para crianças, e argumenta que essa abordagem carece de respaldo científico robusto e pode gerar riscos sérios à saúde.
Os autores começam criticando uma metanálise conduzida por Radaelli et al., a qual avaliou a eficácia das estatinas em crianças com hipercolesterolemia familiar. Embora o estudo citado conclua que as estatinas são eficazes na redução de lipídios e sugira a necessidade de estudos de longo prazo para avaliar sua segurança, Diamond e colegas discordam dessa orientação. Eles afirmam que não existem evidências suficientes para justificar o uso dessas medicações em uma população pediátrica, especialmente considerando a ausência de ensaios clínicos randomizados com seguimento a longo prazo.
O principal argumento contra o uso de estatinas em crianças se fundamenta em três pilares: a fragilidade da hipótese lipídica, os potenciais riscos ao desenvolvimento infantil e a subnotificação dos efeitos adversos dessas drogas. Segundo os autores, há evidências consistentes de que o LDL-colesterol elevado, considerado o principal vilão na doença cardiovascular, não é a causa direta da doença arterial coronariana em pessoas com HF. Em vez disso, sugerem que fatores congênitos de coagulação são mais determinantes, e que apenas uma minoria dos indivíduos com HF possui risco aumentado de eventos cardiovasculares prematuros.
Outro ponto crítico abordado é o papel essencial do colesterol para o desenvolvimento neurológico. O colesterol é um componente fundamental das membranas celulares e está envolvido na produção de hormônios esteroides e da vitamina D. Portanto, reduzir seus níveis de forma agressiva durante a infância — um período de intenso desenvolvimento cerebral e hormonal — pode resultar em consequências imprevisíveis e potencialmente graves.
Além disso, os autores alertam que os efeitos adversos das estatinas estão subestimados nos estudos clínicos publicados. Relatos independentes sugerem que esses efeitos são mais numerosos e graves do que os dados oficiais indicam, o que levanta preocupações sérias sobre a segurança do tratamento crônico iniciado na infância.
A resposta dos autores da metanálise confirma que seu objetivo inicial não era oferecer uma recomendação clínica, mas sim avaliar criticamente as evidências disponíveis sobre o uso de estatinas em crianças com dislipidemias secundárias. Eles reconhecem que os estudos revisados não incluíam dados de longo prazo e tampouco descreveram os potenciais efeitos colaterais tardios, o que reforça a necessidade de cautela. Embora o estudo mencione, de forma descritiva, que algumas crianças com distúrbios genéticos podem atender a critérios para terapia medicamentosa, os autores enfatizam que isso não deve ser interpretado como uma recomendação generalizada.
Ambos os grupos de pesquisadores, portanto, convergem em um ponto essencial: a necessidade de mais evidências antes de se estabelecer diretrizes firmes sobre o uso de estatinas em crianças. O consenso emergente é que a prescrição dessas medicações deve ser criteriosa, baseada em riscos concretos e individualizados, e precedida por investigações que considerem não apenas os efeitos sobre os níveis lipídicos, mas, sobretudo, os desfechos clínicos reais, como redução da mortalidade e melhora da qualidade de vida.
Essa discussão reflete uma preocupação ética e científica central: até que ponto a medicina baseada em evidências está sendo respeitada quando se trata de decisões terapêuticas em populações vulneráveis? E mais importante: estamos dispostos a aceitar riscos significativos e desconhecidos em nome da prevenção, quando os benefícios a longo prazo ainda são incertos?
O debate sobre o uso de estatinas em crianças é um exemplo emblemático de como decisões clínicas devem ser fundamentadas em evidências sólidas e prudência científica, especialmente quando se trata do desenvolvimento de seres humanos em formação.
Fonte: https://doi.org/10.5935/abc.20190034
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