A impressionante adaptação do corpo humano ao jejum prolongado (1970)


O artigo “Starvation in Man”, publicado no The New England Journal of Medicine em 1970, oferece uma visão detalhada e surpreendente sobre a fisiologia do jejum prolongado, baseado em observações clínicas e experimentais. Embora tenha sido escrito há mais de meio século, esse trabalho de Sherwood, Felig, Marliss e Cahill Jr. ainda é uma das referências mais importantes sobre a adaptação humana à privação alimentar.

Logo nas primeiras linhas, o texto deixa claro que a capacidade de um ser humano saudável sobreviver por longos períodos sem comida é significativamente maior do que o senso comum poderia imaginar. Há registros de pessoas que jejuaram por mais de 60 dias sob observação médica, e um dos casos descritos no artigo envolveu um homem obeso que sobreviveu 382 dias apenas com suplementação de vitaminas e minerais, sem consumir alimentos sólidos.

A chave dessa impressionante resistência está na flexibilidade metabólica do corpo humano. Nos primeiros dias de jejum, a principal fonte de energia continua sendo a glicose, obtida inicialmente das reservas de glicogênio do fígado. No entanto, como essas reservas são limitadas e se esgotam em torno de 24 horas, o organismo passa a mobilizar ácidos graxos dos estoques de gordura corporal e a produzir corpos cetônicos — como o beta-hidroxibutirato e o acetoacetato — que se tornam a principal fonte de energia, inclusive para o cérebro.

O artigo descreve como o fígado aumenta a produção de corpos cetônicos para atender à demanda energética do sistema nervoso central, reduzindo assim a necessidade de gliconeogênese a partir de proteínas. Isso é fundamental, pois a degradação excessiva de proteínas musculares comprometeria rapidamente a função vital dos tecidos. Essa mudança metabólica protege a massa muscular e permite uma adaptação mais duradoura ao jejum.

Outro aspecto fascinante do artigo é a descrição do papel dos hormônios durante o jejum. Há uma queda nos níveis de insulina e um aumento do glucagon, o que favorece a mobilização de energia armazenada. Além disso, hormônios como o cortisol participam da regulação do metabolismo durante esse período de adaptação.

Apesar da notável capacidade de sobrevivência, o jejum prolongado não é isento de riscos. O texto menciona possíveis complicações, como alterações eletrolíticas, deficiências de vitaminas e perda de função orgânica quando a adaptação é ultrapassada ou há comorbidades não detectadas. Por isso, destaca-se a importância de acompanhamento médico rigoroso em qualquer protocolo de restrição alimentar severa.

O estudo também explora implicações clínicas, como o uso terapêutico do jejum para perda de peso em indivíduos com obesidade severa. No entanto, mesmo os autores, entusiastas do potencial fisiológico do corpo humano, alertam que tal abordagem só deve ser considerada em ambientes controlados, com suplementação adequada e monitoramento constante.

Em tempos em que estratégias como o jejum intermitente ganham popularidade, revisitar trabalhos como este é essencial para fundamentar práticas modernas com conhecimento científico sólido. A clareza com que o artigo de 1970 descreve os mecanismos fisiológicos da adaptação ao jejum mostra que, apesar da idade do estudo, seus achados continuam extremamente relevantes para a medicina, a nutrição e a saúde metabólica.

Ao revelar a impressionante capacidade humana de sobreviver longos períodos sem alimentos, o artigo não apenas desmistifica ideias preconcebidas sobre o jejum, mas também nos convida a refletir sobre o potencial do corpo em se adaptar quando respeitado, compreendido e bem orientado.

Fonte: https://doi.org/10.1056/NEJM197003192821205

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