O papel dos alimentos de origem animal nas culinárias chinesas e seus benefícios à saúde segundo a análise inflamatória
Em um cenário nutricional global cada vez mais dominado por discursos que condenam o consumo de alimentos de origem animal, um novo estudo publicado na BMC Nutrition traz achados surpreendentes ao analisar 980 pratos típicos das oito principais tradições culinárias da China — Shandong, Sichuan, Cantonesa, Fujian, Jiangsu, Zhejiang, Hunan e Anhui. O foco da pesquisa foi avaliar a composição nutricional e o impacto inflamatório das receitas, com ênfase em dados objetivos extraídos de livros técnicos de culinária amplamente utilizados na formação gastronômica profissional.
Apesar de os alimentos de origem animal serem frequentemente associados a riscos cardiovasculares e inflamação, os resultados deste estudo colocam em xeque essa narrativa, ao revelar que pratos ricos em carnes, ovos, vísceras, frutos do mar e gorduras animais nem sempre apresentam potencial inflamatório elevado. Pelo contrário, certas culinárias com alto teor desses ingredientes demonstraram um perfil inflamatório surpreendentemente favorável.
Presença marcante de alimentos de origem animal
As análises mostraram que ingredientes de origem animal — carnes de aves, bovinos e suínos, vísceras, ovos, leite, frutos do mar e gordura animal — foram amplamente utilizados nas oito cozinhas analisadas. A culinária de Sichuan, em particular, destacou-se pelo uso intenso de carnes e gorduras animais, sendo classificada com o maior percentual de pratos pertencentes ao grupo "rico em gordura e proteína".
Esse padrão alimentar, normalmente associado a dietas baseadas em produtos de origem animal, é rico em energia, proteínas de alto valor biológico, vitaminas do complexo B (como B12, niacina e riboflavina), ferro heme, zinco e outros nutrientes essenciais que não são prontamente encontrados em alimentos de origem vegetal.
Impacto inflamatório: um resultado contraintuitivo
O achado mais relevante do estudo foi a relação entre os pratos ricos em alimentos de origem animal e o Índice Inflamatório da Dieta (DII). A culinária de Sichuan — reconhecidamente rica em gorduras e proteínas animais — apresentou a menor proporção de pratos com perfil pró-inflamatório (41,9%) entre todas as culinárias analisadas. Em contraste, a culinária de Anhui, também com uso expressivo de carnes, teve o maior percentual de pratos pró-inflamatórios (63,1%).
Esses dados desafiam diretamente a ideia de que pratos ricos em carne e gordura animal são necessariamente inflamatórios. A análise estatística demonstrou ainda que os pratos classificados como "ricos em gordura e proteína" não apresentaram diferença significativa na distribuição entre os grupos inflamatórios e anti-inflamatórios. Ou seja, alimentos de origem animal, mesmo em quantidades elevadas, não se associaram automaticamente a uma resposta inflamatória adversa.
Nutrientes fundamentais de origem animal
As receitas com maior concentração de alimentos de origem animal também apresentaram perfis superiores de micronutrientes essenciais, particularmente aqueles encontrados quase exclusivamente em fontes animais. A culinária de Anhui, por exemplo, se destacou pelo alto teor de proteína, niacina e vitamina A — nutrientes fundamentais para o metabolismo energético, saúde da pele, imunidade e função celular. Fujian, rica em frutos do mar e ovos, apresentou os maiores níveis de riboflavina, vitamina B12, vitamina D e colesterol (precursor hormonal essencial).
Esses dados corroboram a importância dos alimentos de origem animal como veículos de nutrientes que desempenham papéis fisiológicos críticos. A vitamina B12, por exemplo, é essencial para a formação dos glóbulos vermelhos, manutenção do sistema nervoso e síntese de DNA, sendo virtualmente ausente em alimentos vegetais. A vitamina D, outro nutriente destacado nas culinárias ricas em produtos do mar, é fundamental para o metabolismo ósseo e imunidade.
Além disso, as gorduras animais utilizadas em diversas preparações — como banha e gordura de aves — são fontes de ácidos graxos saturados e monoinsaturados que, ao contrário da visão tradicional, têm sido reavaliados pela ciência recente quanto ao seu real impacto na saúde cardiovascular. Este estudo acrescenta à discussão o dado de que pratos com alta densidade de gordura animal podem, de fato, ser menos inflamatórios do que pratos com menos gordura, dependendo do contexto alimentar.
Por que Sichuan foi menos inflamatória do que Anhui?
A diferença entre os índices inflamatórios de Sichuan e Anhui não pode ser explicada apenas pelo teor de alimentos de origem animal, já que ambas utilizam esses ingredientes amplamente. O estudo sugere que a discrepância pode estar relacionada a diversos fatores contextuais e culturais na composição dos pratos.
Sichuan se caracteriza por pratos intensamente temperados, ricos em especiarias como pimenta-do-reino, pimenta vermelha, alho e gengibre — todos ingredientes com compostos bioativos com potencial anti-inflamatório reconhecido na literatura. Além disso, a técnica culinária frequentemente envolve frituras rápidas em óleo quente (stir-fry), o que preserva melhor certos nutrientes e compostos fenólicos.
Do ponto de vista nutricional, Sichuan apresentou a maior densidade energética e o maior teor de gordura total entre todas as oito cozinhas quando se analisam porções padrão (100 g). Também teve teores elevados de proteína, com baixa proporção de carboidratos. Quando ajustado para a mesma quantidade de energia (2056 kcal), Sichuan manteve o maior conteúdo de gordura e proteínas e os menores níveis de carboidratos — um perfil fortemente associado a padrões alimentares cetogênicos e comumente estudado em intervenções anti-inflamatórias.
Macronutrientes de Anhui e Fujian: semelhanças e contrastes
A culinária de Anhui, embora rica em proteínas de origem animal, apresenta uma composição macronutricional distinta quando comparada à de Sichuan:
- Alto teor de proteínas, em especial devido ao uso de carnes de aves, peixes de água doce, vísceras e carne de porco.
- Moderado teor de gordura total, inferior ao de Sichuan, resultando em pratos com menor densidade lipídica.
- Teor elevado de carboidratos, tanto em porção padrão (100 g) quanto em porção energética (2056 kcal), o que pode estar relacionado à utilização de amidos e alimentos adoçados.
- Na análise por energia equivalente, Anhui lidera em teores de niacina, tiamina e vitamina A, indicando forte presença de vísceras e carnes vermelhas.
Por outro lado, a culinária de Fujian, reconhecida por sua leveza e ênfase em frutos do mar, revelou:
- Maior teor de carboidratos entre todas as culinárias, especialmente quando ajustado por energia — uma consequência do uso de massas, raízes amiláceas e técnicas de cozimento que mantêm molhos adocicados.
- Menor teor de gordura total em comparação a todas as outras tradições, reforçando seu perfil leve.
- Moderado teor proteico, oriundo principalmente de frutos do mar, ovos e carnes brancas.
- Altos níveis de colesterol, riboflavina, vitamina B12, vitamina D e folato por porção energética, refletindo o consumo frequente de mariscos, ovos e caldos ricos.
A combinação de carboidratos elevados e baixa gordura em Fujian e Anhui pode contribuir para o aumento da carga glicêmica das refeições, favorecendo processos inflamatórios quando não equilibrados por outros fatores — o que ajuda a explicar por que ambas apresentaram os maiores percentuais de pratos com pontuação inflamatória positiva.
Culinária tradicional versus dogmas modernos
Outro ponto de destaque é que muitas das receitas analisadas refletem padrões alimentares tradicionais que sobreviveram por séculos, sendo moldados por critérios sensoriais, culturais e empíricos de bem-estar. Esses pratos geralmente combinam carnes, caldos densos, miúdos e métodos de cocção lentos, o que favorece a preservação de nutrientes e a biodisponibilidade dos mesmos.
A utilização de ingredientes como fígado, coração e rins — muitas vezes desprezados na alimentação moderna — aparece de forma relevante nas culinárias de Shandong, Hunan e Anhui. Esses órgãos são densos em nutrientes como ferro, cobre, vitamina A e colina, sendo considerados por muitos especialistas como verdadeiros "superalimentos".
A pesquisa também aponta que o uso de gordura animal, ao contrário do senso comum, não está necessariamente relacionado a maior inflamação. Culinárias com maior proporção de gordura animal, como Sichuan e Shandong, apresentaram proporções inferiores de pratos inflamatórios quando comparadas à culinária de Fujian, que utiliza menos gordura animal, mas teve maior pontuação inflamatória.
Considerações finais
O estudo desafia abertamente os pressupostos de que alimentos de origem animal são prejudiciais à saúde, ao mostrar que dietas tradicionais chinesas ricas em carnes, ovos, vísceras e gorduras animais não apenas oferecem uma ampla gama de nutrientes essenciais, como também podem ter um perfil inflamatório mais favorável do que dietas com menos gordura e mais carboidratos refinados.
Esses achados sugerem que o valor nutricional e os efeitos metabólicos dos alimentos de origem animal não devem ser julgados de forma isolada, nem condenados com base em modelos ocidentais simplificados. Em vez disso, sua inclusão equilibrada dentro de padrões culinários tradicionais pode representar uma estratégia eficaz para promover saúde e longevidade.
Portanto, em vez de evitar alimentos de origem animal com base em percepções generalizadas, talvez seja hora de resgatar sua valorização no contexto de dietas culturalmente ricas, nutricionalmente densas e, como mostra este estudo, metabolicamente adequadas.
Fonte: https://doi.org/10.1186/s40795-025-00999-2
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