Esta médica foi pioneira na contagem de calorias há um século, e ainda estamos lidando com as consequências
Lulu Hunt Peters, uma mulher pioneira para sua época, obteve um doutorado em medicina pela Universidade da Califórnia em 1909, quando menos de 5% dos estudantes de medicina eram mulheres. Ela foi a primeira mulher a estagiar no Hospital Geral do Condado de Los Angeles e chegou a liderar seu laboratório de patologia. Além disso, atuou como presidente do comitê de saúde pública da California Federation of Women’s Clubs, onde exerceu influência significativa sobre políticas de saúde.
No entanto, o que Peters considerou seu maior triunfo foi pessoal: ela perdeu 70 libras (cerca de 32 kg) e dedicou sua vida a divulgar o que acreditava ser a chave para o emagrecimento: a contagem de calorias. Em uma época em que o conceito ainda era pouco conhecido fora dos laboratórios científicos, ela ajudou a popularizá-lo, transformando a ideia de calorias em um dos conceitos centrais da nutrição moderna. Embora tenha fornecido um método simples para entender o valor energético dos alimentos, a fixação por calorias também gerou impactos negativos, incentivando a obsessão pelo emagrecimento e contribuindo para o consumo excessivo de carboidratos processados.
Em 1918, Peters lançou "Diet and Health With Key to the Calories", o primeiro best-seller sobre dieta da história. A obra, escrita com humor e sátira, orientava os leitores a pensar em alimentos em termos de calorias, e não em porções convencionais. Em 1922, o livro alcançou as listas de mais vendidos e permaneceu nelas por quatro anos, impulsionando a disseminação da cultura da contagem de calorias.
O conceito de caloria surgiu no século XIX como uma medida de energia térmica. O químico francês Nicolas Clément o introduziu nos anos 1820 para calcular a energia necessária para operar motores a vapor. Posteriormente, cientistas alemães adaptaram a ideia para o corpo humano, comparando-o a uma máquina que queima alimentos como combustível. Wilbur O. Atwater, um químico americano, trouxe esses estudos para os EUA e os aplicou à nutrição humana, desenvolvendo tabelas calóricas que até hoje influenciam os rótulos dos alimentos.
Peters fez parte de um movimento reformista da alimentação que promovia uma abordagem científica e racional da nutrição. Sua própria experiência com a perda de peso serviu como um experimento pessoal, e ela acreditava que a contagem de calorias poderia ajudar outras pessoas a alcançar o mesmo sucesso. Seu método encontrou um público receptivo no início do século XX, quando a moda e os padrões de beleza passaram a valorizar silhuetas mais esguias. O excesso de peso, antes visto como um símbolo de saúde e prosperidade, passou a ser associado às classes baixas, enquanto a magreza tornou-se um sinal de status e autocontrole.
A ascensão da cultura da dieta coincidiu com o surgimento da balança doméstica em 1913. Antes disso, as pessoas só pesavam-se em consultórios médicos ou balanças públicas. A possibilidade de monitorar o peso em casa reforçou a obsessão pelo emagrecimento. Peters transformou sua experiência em um fenômeno midiático, escrevendo uma coluna diária intitulada "Diet and Health" no Los Angeles Times, que se tornou um sucesso nacional.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o governo dos EUA incentivou a população a economizar alimentos com o slogan "Food Will Win the War". Peters incorporou essa mensagem em seu discurso, argumentando que pessoas acima do peso estavam "acumulando" calorias que poderiam ser destinadas ao esforço de guerra. Ela sugeriu que grupos de amigos formassem "classes anti-Kaiser" para monitorar suas dietas coletivamente. Após a guerra, Peters viajou aos Bálcãs em uma missão humanitária da Cruz Vermelha, auxiliando no combate à fome e doenças infantis.
Apesar de sua influência, a teoria da contagem de calorias simplificava excessivamente o metabolismo humano. Estudos modernos mostram que dietas restritivas falham a longo prazo porque desencadeiam respostas hormonais que aumentam a fome e reduzem o metabolismo. Além disso, a relação entre ingestão calórica e ganho de peso é mais complexa do que se imaginava: proteínas, gorduras e carboidratos são metabolizados de maneiras diferentes, e fatores como microbiota intestinal, hormônios e qualidade dos alimentos influenciam o armazenamento de gordura.
A abordagem de Peters, que enfatizava força de vontade e vergonha como motivadores para a perda de peso, também ajudou a perpetuar a "gordofobia" na sociedade. Apesar das críticas atuais ao seu método, sua influência persiste. A contagem de calorias continua sendo uma prática comum, e a moralização do emagrecimento ainda impacta a cultura contemporânea.
Atualmente, a eficácia das dietas tradicionais está sendo questionada, e novas pesquisas sugerem que fatores biológicos desempenham um papel maior no controle do peso do que simplesmente ingerir menos calorias. Medicamentos como Ozempic estão mudando o cenário, ao demonstrar que o apetite e o metabolismo são regulados por mecanismos hormonais. No entanto, a crença no "controle da vontade" como chave para a perda de peso ainda ressoa, ecoando as palavras de Peters: "Seu estômago deve ser disciplinado".
Sua obra, ao mesmo tempo inovadora e controversa, ajudou a moldar a forma como a sociedade encara a nutrição, a obesidade e a perda de peso—para o bem e para o mal.
Fonte: https://bit.ly/4hYl0Tw
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