Banhos frios, jejuns, etc.

A disciplina do corpo subordina-se a um exercitar-se que vise à liberdade interior.

Por Donato Ferrara,

Nossos exercícios não devem consistir em coisas contrárias à natureza ou inauditas, pois, se assim o fizermos, nós, que nos dizemos filósofos, em nada nos diferenciaremos dos que fazem truques. É difícil caminhar sobre uma corda esticada; e não só difícil, mas perigoso. Será essa uma razão para que pratiquemos o equilíbrio sobre cordas, a escalada de palmeiras ou o abraço nas estátuas? De maneira nenhuma. Não é a dificuldade ou o perigo que são adequados ao exercício, mas sim sua utilidade relativamente ao fim proposto por nossos esforços. E qual é o fim proposto por nossos esforços? Viver sem entraves em nossos desejos e nossas repulsas. Que é isso? Não se ver frustrado naquilo que se deseja, nem cair naquilo por que se tem repulsa. Eis o objetivo a que deve tender o exercício. (Epicteto, Diatribes, III, 12: 1-4)

Há dois substantivos gregos que denotam o ato de treinar ou exercitar-se: áskēma e áskēsis. Ambos têm origem no verbo askéō, o qual, nos poemas homéricos, era empregado em contextos que indicavam o trabalho com a lã ou o metal brutos, ou ainda a confecção de instrumentos como um arco. Com o transcurso dos séculos, passou a significar “fazer exercícios”, tanto no âmbito das atividades atléticas quanto no da vida moral. No Eutidemo de Platão, por exemplo, Sócrates expressa seu desacordo face aos sofistas com que dialoga perguntando-lhes o que havia em sua argumentação capaz de exortar os jovens a exercitar a sabedoria e a virtude (seção 283a: sophían… kaì aretḕn askeîn). Do vocabulário filosófico, migrou para a religião com Fílon de Alexandria (ca. 20 a. C. – 50 d. C.), no judaísmo, e os pensadores cristãos, donde as palavras ascese, ascético e ascetismo com o sentido que hoje lhes emprestamos em português, quase exclusivamente marcado pela noção de um ato de purificação ditado por uma intenção religiosa (para os vocábulos gregos, vejam-se os verbetes correspondentes dos dicionários de Bailly e Chantraine).

Por causa de tal particularidade semântica, quando Epicteto fazia uso de palavras como áskēsis e askéō, estava clara para todos os presentes certa relação de contiguidade e interdependência que havia entre os exercícios que envolviam o corpo e aqueles que se voltavam para a mente (ou alma). As modalidades esportivas, por exemplo, tão importantes na vida social greco-romana, eram vistas pelos estoicos como formas desviadas de áskēsis porque diziam respeito unicamente ao corpo e eram praticadas com o fito tanto de torná-lo mais belo quanto de colocá-lo em posição de sobrepujar oponentes para obter vitórias. Ter um corpo atlético ou ser um ganhador em dado esporte eram possibilidades que, à primeira vista, poderiam ser inscritas na categoria estoica dos indiferentes (não tornam ninguém pior nem melhor), não fosse seu caráter altamente exigente: a cultura do físico pelo físico ou a busca de honrarias pelas honrarias absorvem um tempo e uma energia consideráveis, em detrimento e negligência dos exercícios voltados à interioridade.

Flávio Arriano anota uma crítica ainda mais incisiva de seu mestre:

É sinal de incapacidade ocupar-se com as coisas do corpo, tal como exercitar-se muito, comer muito, beber muito, evacuar muito, copular muito. É preciso fazer essas coisas como algo secundário: que a atenção seja toda para o pensamento. (Manual, 41; trad. Aldo Dinucci e Alfredo Julien)

Não nos enganemos: a relação que Epicteto tinha com o corpo é complexa. Como ex-escravo acometido de um aleijão, ele tinha plena consciência de que se trata de uma parte que nos constitui enquanto seres humanos sobre a qual não temos pleno poder, muita vez nem sequer a posse. Por isso, nas Diatribes, é bastante comum que ele se refira a ela com o diminutivo sōmátion (“corpinho”, “corpúsculo”), como a indicar-lhe a debilidade e sua natureza, por assim dizer, aprisionável. Enquanto estoico, porém, ele não ignorava que os precursores de sua escola como Cleanto, que fora lutador, e Crisipo, que fora corredor de longas distâncias, não se tinham descuidado da forma física: antes tinham inscrito seus exercícios atléticos dentro do quadro de uma disciplina intelectual ainda mais rigorosa. Na entrada 41 do Encherídion, o que Epicteto critica não é a preocupação com o corpo em si mesma, que pode e deve coexistir com a filosofia: com efeito, em outra ocasião (cf. Diatribes, III, 21: 18), ele afirma que uma certa disposição física é necessária à atividade filosófica, tendo sido um traço de Sócrates, Diógenes e Zenão, os quais lidaram com a juventude e procuraram nela fazer adeptos (ou acaso alguém pensa que os jovens dão ouvidos a fracotes ou acomodados?). O problema, claro, são os excessos na atividade física — daí o uso repetido do advérbio polù, “muito” — que ele não distingue de outros modos de submissão ao corpo como a glutonaria ou a ninfomania. Em tais casos, ele vê um sinal de aphuía, que se poderia traduzir por termos como “incapacidade”, “inabilidade natural” ou “inaptidão” (para a filosofia). Neste mesmo diapasão, voltando-nos à passagem que abre este texto, vemos que incorrer em certas excentricidades nos exercícios, como equilibrar-se em uma corda, escalar palmeiras (modalidade acrobática semelhante ao folguedo junino do pau-de-sebo) ou sair por aí abraçando estátuas de bronze cobertas de neve (o que Diógenes de Sínope supostamente fazia), são atividades que vão, na visão de Epicteto, contra a natureza (parà phúsin), que mais convêm a ilusionistas. De modo semelhante, notamos que muitos dos que alegam ter como objetivo “superar os limites do próprio corpo” são incapazes de fazê-lo para a satisfação de si mesmos e em segredo, precisando de espelhos, vitrines e perfis no Instagram para ostentar ao mundo suas proezas.

Epicteto decerto concordaria com a fórmula célebre de Juvenal “mens sana in corpore sano“ (“mente sadia em corpo sadio”), contanto que ficasse clara a primazia da mente em tal dicotomia. O que ele e muitos estoicos diriam é que, para todos aqueles que tomavam o estoicismo como filosofia de vida e fonte de disciplina mental, era consequência natural que tal ordenamento interior também se traduzisse em práticas para o corpo. Afinal, as virtudes não são apenas conjuntos de palavras que se sacam aqui e ali para deleite dos intelectos, mas formas de engajamento de todo o ser dos indivíduos com elas comprometidos — donde a necessidade de exercícios físicos na medida certa. Nas linhas que se vão ler, falaremos mais detidamente de dois desses exercícios sob a perspectiva estoica: os banhos frios e as privações de comida.

A prática dos banhos frios é mencionada duas vezes nas Diatribes de Epicteto, sempre com referência a outros filósofos. Ali, diz-se que Pacônio Agripino, estoico do século I, cultivava tal hábito depois dos exercícios físicos, e que não mudou a rotina nem mesmo enquanto estava sendo julgado, esperando com tranquilidade a sentença que resultou em seu exílio, por volta de 67 (cf. Diatribes, I, 1: 28-30). Mais adiante, ao mostrar, uma vez mais, que idealizava Sócrates a ponto de não ver alguns de seus defeitos mais notórios, Epicteto insistirá na noção de que o ateniense sobressaía mesmo por seu asseio (o que sabemos ser inexato), tomando banhos frios à falta de quentes (cf. Diatribes, IV, 11: 19). Também Sêneca, em confissão a Lucílio, conta que fora um entusiasta da prática, embora tivesse passado, na velhice, a usar água tépida, apenas aquecida pelo calor solar, estando-lhe então difícil mesmo o ato de tomar banho em si (cf. Cartas a Lucílio, LXXXIII, 5-6; veja-se também LIII, 3). O que se pode depreender de tais fragmentos muito sucintos é que os banhos frios parecem ter sido razoavelmente populares entre os estoicos, e não tinham por objetivo mortificar ou castigar o corpo: eram práticas levadas a efeito com moderação e bom senso, não raro alternadas com banhos quentes quando necessidade havia. A questão era colocar-se à prova, administrar para si uma certa quantidade de desconforto.

Em um artigo publicado no New York Times, o escritor norte-americano Ben Dolnick relatou sua experiência com os banhos frios, do estranhamento inicial ao hábito sedimentado. Ele observa que a prática, tornada diária há alguns meses, não lhe trouxe benefícios verificáveis para a pele ou o metabolismo, mas contribuiu para uma mudança mais interessante e profunda. Depois de confessar-se dominado por duas forças, o “Eu-Gosto” (Liking) e o “Eu-Não-Gosto” (Disliking) — “um casal de crianças petulantes e melodramáticas no banco de trás de minha mente” —, e ilustrar brevemente os métodos de dominação de ambas, Dolnick diz o seguinte:

Esta — repetindo-se um ou dois milhões de vezes, com variações sutis — é a minha vida sob o regime impiedoso do Eu-Gosto e do Eu-Não-Gosto. Eles são vigilantes, são incansáveis e são, em muitos casos, diametralmente opostos a meu interesse próprio. E, como vim a descobrir recentemente, não há nada melhor que um banho frio para revelar o caráter essencialmente fraudulento dessas coisas. Como os banhos são coisas que acontecem todos os dias e são tão fundamentalmente sem importância, eles constituem o fórum perfeito no qual esses tiranetes da preferência podem ser arrastados até a luz e obrigados a confessar que estiveram, esse tempo todo, blefando. Nos momentos antes de você andar ao encontro da torrente fria, o Eu-Não-Gosto começará, invariavelmente, a estrilar: De jeito nenhum! Dá para imaginar o que vamos sentir quando molharmos as costas? O peito? Nossos órgãos genitais — pelo amor de Deus?

Examinando a si mesmo, o escritor nota que o hábito de submeter-se a uma pequena dose de desconforto diário tem, por assim dizer, uma reverberação mental — Pierre Hadot não hesitaria em usar o adjetivo “espiritual” — que vai além de seus efeitos corporais imediatos, revelando-lhe o que há de tormentoso tanto na expectativa de prazeres (as reivindicações do Eu-Gosto) quanto na esquivança de incômodos ou dores (os protestos do Eu-Não-Gosto). Embora talvez desconheça a concepção que a filosofia grega tinha da áskēsis, Dolnick descobriu, por conta própria, um tipo de exercício que envolve todo o seu ser. Os desdobramentos éticos e existenciais de seu pequeno ritual diário merecem ser transcritos:

Uma vez que você enxergou este fato com clareza — que o Eu-Gosto e o Eu-Não-Gosto são falsários volúveis — o mundo inteiro começa a florescer de possibilidades. Quantos projetos você gostaria de iniciar, quantas línguas você gostaria de aprender, quantas conversas você gostaria de ter, e que são coisas que estão fortificadas por barreiras intransponíveis de aversão? Quantas horas de procrastinação, quantos anos de telefonemas sem retorno você fez derramar para esquivar-se de uns poucos momentos de desconforto? Quantas rosquinhas de detonar dietas, quantos casos de arruinar casamentos, quantos crimes de destruir carreiras foram levados adiante simplesmente porque alguém caiu na lábia sedutora do Eu-Gosto? O banho frio — com sua economia de materiais e seu roteiro pedagógico compacto — está sempre disponível como um modelo de superação.

Como se pode ver, a concepção de Dolnick é bastante semelhante à do fragmento das Diatribes que citamos no início do texto. Epicteto, porém, vale-se do vocabulário técnico do estoicismo, dizendo que os exercícios que envolvem o corpo devem, longe de extravagâncias, visar à disciplina do desejo (órexis) e da repulsa (ékklisis), tornando-nos mais realistas quanto à nossa própria situação no mundo. O escritor norte-americano fala dos tiranos Liking e Disliking e do compromisso, que firmou de si para si, de não permitir dominar-se por toda e qualquer “preferência não examinada”. Entretanto, comete uma gafe ao sugerir que o estoicismo é um tipo de filosofia que engendra robôs: decerto ele não leu as Cartas a Lucílio, de Sêneca, nem as Meditações, de Marco Aurélio, em que o calor humano se nota logo às primeiras páginas. O breve artigo termina com um adágio zen-budista (um tanto críptico, mas muito próximo da ideia de indiferença, tão cara aos estoicos): “Não goste; não desgoste; tudo então ficará claro”.

Quanto a jejuns e outras atividades ligadas à privação de alimentos, as evidências que temos no corpus estoico são também exíguas. Especulando-se um pouco mais, pode-se supor que não fossem de todo desconhecidas dos estoicos, visto que Cleanto de Assos e Marco Aurélio parecem não ter tido problemas para aceitar a morte deixando de comer (o que, aliás, era o modo como pacientes terminais da época rejeitavam o prolongamento inútil de suas vidas). Mas nem só para morrer serviam essas privações, é claro: valiam e valem muito para viver, e bem. Musônio Rufo chama-nos a atenção para as dificuldades que impõe, tendo-se em vista que necessitamos comer algumas vezes ao dia, a disciplina durante as refeições. Por mais comezinhas que pareçam, elas são grandes testes para a virtude da moderação ou temperança (sōphrosúnē), ao permitirem que certos apelos do desejo sejam freados:

Quão vergonhoso é comportar-se diante da comida desse modo [i. e., sem controle] é algo que podemos deduzir a partir do fato que relacionamos essas pessoas mais com animais irracionais do que com seres humanos inteligentes. Então, se isso é vergonhoso, o oposto tem de ser inteiramente bom; ou seja: exercitar a moderação e o decoro ao comer, demonstrar o autocontrole nestas coisas antes de mais nada, não é uma coisa fácil de se fazer, mas uma que requer muita atenção e prática. E por que isso é assim? Porque, apesar de existirem muitos prazeres que enredam o homem na direção da ação má e o forçam a submeter-se ao contrário do que é bom, o prazer de comer é provavelmente o mais difícil de combater. Pois com outros prazeres nos deparamos menos frequentemente e de alguns deles podemos nos abster por meses ou anos inteiros, mas necessariamente somos postos à prova por aquele tipo todos os dias e, em geral, duas vezes ao dia, dado que não é possível ao homem viver de outra maneira. Assim, quanto mais somos tentados pelo prazer de comer, mais perigos estão aí envolvidos. E de fato em cada refeição não há apenas um risco de que as coisas deem errado, mas muitos. (Musônio Rufo, Diatribes, XVIIIa)

Alimentar-se frugalmente, e mesmo pobremente, era um exercício a que os estoicos recorriam, servindo-lhes pelo menos em dois propósitos: (a) isso os fortalecia, deixando-os mais bem preparados para a eventualidade de virem a passar fome (coisa não de todo impensável na Antiguidade) e (b) isso aumentava seu grau de consciência quanto às dificuldades enfrentadas pelos que nem sempre tinham o que comer, suscitando nos filósofos sentimentos de empatia pelos pobres. Sêneca exorta Lucílio a praticar um exercício ainda mais radical:

Tenho, aliás, tanta vontade de pôr à prova a tua firmeza de alma que, com base nos preceitos de filósofos ilustres, forjaria este outro preceito destinado à tua pessoa: fixa alguns dias intercalados nos quais mates a fome com alimentos exíguos e vulgares, e te vista com roupa o mais possível grosseira, de modo a comentares para ti próprio: era então disto que eu tinha medo? A alma deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos de tranquilidade, deve-se fortalecer contra as injúrias da Fortuna nos períodos em que ela nos sorri. Os soldados fazem manobras em tempos de paz, constroem paliçadas mesmo sem haver inimigos, treinam-se por meio de esforços supérfluos para serem capazes de afrontar as necessidades reais. (…) Leva esta vida uns três ou quatro dias, ocasionalmente mesmo por períodos mais longos, a título, não de capricho, mas de experiência. (Sêneca, Cartas a Lucílio, XVIII, 5-7; trad. J. A. Segurado e Campos)

Na mesma epístola, mais adiante, ele revela uma terceira dimensão desses exercícios de privação, mostrando que eles podem ser uma fonte de prazer. Trata-se do prazer de ser capaz de viver com pouco, um prazer paradoxalmente homeopático, buscado por Epicuro e seu principal discípulo, Metrodoro, mas condizente com os princípios do Pórtico. Escreve Sêneca o seguinte:

O grande mestre do prazer que foi Epicuro tinha alguns dias fixos em que nunca comia à sua vontade, para observar se algum detrimento daí resultava ao completo e consumado prazer, até que ponto tal detrimento se fazia sentir, e também para ver se merecia grandemente a pena eliminá-lo. Pelo menos é o que ele diz na carta que escreveu a Polieno datada do arcontado de Carino; gaba-se mesmo de poder alimentar-se por menos de um asse [moeda romana de pouco valor], enquanto Metrodoro, ainda num estado não tão avançado, necessita de um asse inteiro. Julgas que este tipo de alimentação produz só saciedade? Produz também prazer, não um prazer ligeiro e fugaz, que continuamente se tem de espevitar, mas antes um prazer constante e fixo. Não que seja agradável viver de água, de polenta, de uma migalha de pão de centeio; mas é um prazer supremo conseguir sentir prazer em tais alimentos e atingir assim um estado ao abrigo de toda e qualquer injustiça da Fortuna. (idem, 10)

O professor William B. Irvine, autor de Um guia para a vida boa: A antiga arte da alegria estoica (ainda sem tradução em português), ao comentar esses atos de “desconforto voluntário” recomendados pelos estoicos de outrora e ainda exequíveis na atualidade, observa um efeito suplementar: eles conseguem aumentar o grau de satisfação da pessoa com as comodidades que ela tem (p. 112-113). De fato, quem recorre à água fria com alguma frequência se sentirá muito mais revigorado quando vier a tomar uma ducha quente, assim como aquele que está acostumado a privar-se de quando em quando de alimentos experimentará um prazer maior em suas refeições. Em meio a uma vida moderna marcada por excesso de conforto, os que aplicarem princípios estoicos em seu cotidiano virão emergir um sentimento genuíno de gratidão pelas sensações positivas mais simples que vierem a ter. E isso não é pouco.

De tudo o que ficou dito, resulta evidente que tais exercícios, quando praticados segundo uma compreensão correta, fortalecem no indivíduo a percepção de que ir ao encontro de um desejo, esperando-se daí obter um prazer, e estacar diante de uma repulsa, movido pelo medo de um incômodo, não são atos gratuitos: o preço que se paga por eles é uma boa porção de nosso autocontrole. Quando deixamos a vigilância fora da mesa e nos refestelamos sem pudores, nosso autocontrole fica sem exercício. Quando cedemos à preguiça diante de uma situação que tem algo de inconveniente ou de áspero, nosso autocontrole torna-se um pouquinho mais flácido. Se nunca temos coragem de afrontar os tiranetes Eu-Gosto e Eu-Não-Gosto, eis um autocontrole na mais imóvel das atrofias. Um bom modo de pô-lo em movimento é fazê-lo entrar em conexão com o corpo e domar esta nossa parte que sempre tende à inércia, mas é claro que outras práticas, um pouco mais ou um pouco menos corporais, podem produzir efeitos semelhantes. Abdicar, ocasional ou periodicamente, de prazeres como consumir álcool, escutar música, assistir a séries de TV ou interagir nas redes sociais por uns dias aumenta o nível de consciência que temos sobre nossos hábitos, assim como passar um tanto de frio no inverno e de calor no verão (uma proposta de Musônio Rufo atualizada por Irvine) ou caminhar sem calçados por superfícies desconfortáveis (hábito que Sócrates e Catão de Útica tinham) podem nos dar um vislumbre do que seja a dureza da vida que muitos até hoje levam. A questão é encarar tais práticas como testes que nos colocamos a nós mesmos — sem ostentação, sem alarde, sem a necessidade de plateia. Assim, elas adquirirão um caráter ascético — na melhor e na mais antiga acepção da palavra.

A orientação interior dos exercícios que envolvem o corpo fica brilhantemente atestada pelo fragmento a seguir, que nos mostra, além do mais, que os adeptos do estoicismo podem transformar mesmo as situações mais prosaicas em desafios para si mesmos:

E, para concluir, quaisquer meios de que lançam mão os que exercitam o corpo, se tendem de algum modo a treinar o desejo e a repulsa, podem também servir como exercícios. Mas, se eles se destinam à ostentação, são sinais de alguém que se dá às coisas externas e anda à cata de alguma presa, que está atrás de espectadores que exclamem: “Oh! eis o grande homem!”. Por isso tinha razão Apolônio quando dizia: “Quando você quiser exercitar-se para seu próprio proveito, e estiver sentindo sede em um dia de calor, ponha na boca um gole de água gelada, cuspa-a e não conte isso a ninguém”. (Epicteto, Diatribes, III, 12: 16-17)


Fonte: http://bit.ly/39ukEn4

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