Crescendo como estoico: Uma educação filosófica voltada para o caráter, a persistência e a garra.
Por Leah Goldrick,
A verdade desagradável é que muitos estudantes ao redor do mundo jamais receberão nenhum tipo que seja de educação filosófica. Em geral, a filosofia é vista como um exercício inútil, reservado a eruditos em suas torres de marfim. A inclusão dessa matéria nos currículos das crianças em idade de escola primária é rara, especialmente nos Estados Unidos, e alguns acadêmicos questionam se pré-adolescentes têm mesmo a capacidade de investigação filosófica.
Essa asserção baseia-se provavelmente na premissa de que a filosofia é, em última análise, mais teórica do que prática. Ela negligencia o potencial que pais e responsáveis argutos têm de ensinar a crianças pequenas como uma perspectiva filosófica pode tornar suas vidas felizes e providas de significado.
Onde os pais podem encontrar um roteiro de aprendizado capaz de ajudar as crianças a desenvolver um caráter forte e lidar com os desafios que a vida inevitavelmente lhes lançará no caminho? E se a fórmula em questão for algo já existente e capaz de apresentar as crianças pequenas à filosofia dentro de casa, por meio de atividades práticas e do diálogo?
O filósofo estoico Caio Musônio Rufo (ca. 30-100 d.C.) foi chamado o “Sócrates romano”. Ele ficou bastante conhecido na Antiguidade por causa de sua integridade, assim como por ter sido o professor do ainda mais célebre Epicteto. Era visto como uma espécie de radical por sustentar que meninos e meninas deveriam receber a mesma educação desde cedo:
Que não existe um conjunto de virtudes para o homem e outro para a mulher, é coisa fácil de perceber. Em primeiro lugar, o homem tem de ter entendimento, e também deve tê-lo a mulher — ou então para que serviriam um homem ou uma mulher que fossem tolos? (…) Por isso, considero razoável que as coisas que se referem à virtude tenham de ser ensinadas tanto ao homem como à mulher; e além do mais que desde a infância se lhes ensine que isto é certo e aquilo é errado (e que a coisa é a mesma para ambos); que isto é vantajoso e aquilo é prejudicial, que se deve fazer isto e não se deve fazer aquilo. A partir de tal treino, o entendimento se desenvolve nos que estão aprendendo, meninos e meninas por igual, sem nenhuma diferença. [Diatribes, IV]
A pedagogia de Musônio Rufo tem por base a teoria ética estoica, a qual enfatiza que a virtude é o estado natural do ser humano, e a felicidade o que resulta do ato de tornar-se bom ou de ter um caráter excelente, algo que se atinge por meio de uma preparação pelo hábito. Declara ele:
Como poderíamos nos tornar prudentes se tivéssemos chegado ao reconhecimento de quais coisas sejam verdadeiros bens e quais sejam males, mas se nunca tivéssemos praticado o desprezo às coisas que somente aparentam ser boas? Por conseguinte, logo após o aprendizado das lições apropriadas para toda e qualquer excelência, um treino prático deve seguir invariavelmente, se de fato esperamos tirar algum benefício das lições que acabamos de aprender. [Diatribes, VI]
Musônio Rufo pensava que um senso de propósito nobre instilado nos jovens protege-os de erros que tornam a vida desnecessariamente difícil:
Pois bem, se é necessário que ambos [o menino e a menina] sejam proficientes na virtude que é apropriada ao ser humano — ou seja, para os dois casos, serem capazes de entendimento, autocontrole, coragem e justiça, um não menos que o outro —, não ensinaríamos a ambos indistintamente a arte pela qual um ser humano torna-se bom? Sim, decerto devemos fazê-lo, e nada mais. [Diatribes, IV]
Creio que o projeto educacional bimilenar de Musônio Rufo tem muito a oferecer a pais e responsáveis perspicazes, que desejem guiar seus filhos na direção de uma concepção de vida filosófica e resiliente.
Uma breve palavra de advertência, porém, antes de explorarmos as lições específicas que um pai ou mãe estoica deve ensinar. Nós, como pais, temos de dar o bom exemplo. Ainda que não se trate de ser uma perfeição como pai ou mãe, não há proveito em ensinar padrões de comportamento segundo os quais nem sequer tentamos viver. As crianças percebem rápido a hipocrisia; portanto, não tenha medo de admitir seus próprios erros diante dela. Isso facilita o processo de aprendizado do que seja a virtude.
Valendo-nos dos apotegmas de Musônio Rufo que chegaram até nós desde a Antiguidade, podemos retirar deles alguns exercícios de formação de caráter que nos sejam úteis para assentarmos os fundamentos necessários à excelência. De modo especial, ele sugeriu uma educação baseada em cada uma das quatro virtudes cardeais dos estoicos.
JUSTIÇA
Dikaiosúnē, com o significado de “justiça” ou “integridade” no grego antigo, é na ética estoica um traço de personalidade, nem tanto uma condição externa a nós imposta, como no sentido moderno. A justiça se traduz como empatia, equidade, amabilidade, consideração pelos outros e filantropia. Sobre esta virtude, Musônio Rufo tem muito a dizer de proveitoso na tarefa de conduzir crianças pequenas, incluindo o seguinte:
Esquivar-se do egoísmo, ter alta consideração pela equidade e, sendo um ser humano, desejar ajudar e não ter a intenção de prejudicar os seus companheiros humanos é a lição mais nobre, e ela torna justo quem o aprende. [Diatribes, IV]
E ele continua:
Não são todas essas coisas [materiais] supérfluas e desnecessárias, sem as quais é não somente possível viver, mas também ser saudável? Não são elas a fonte de inquietações constantes e não custam grandes quantias de dinheiro, com as quais muitas pessoas poderiam beneficiar-se pela caridade pública ou privada? Quão mais meritório que viver uma vida de luxo é ajudar muitas pessoas! Quão mais nobre que gastar dinheiro com paus e pedras é gastá-lo com homens! [Diatribes, XIX]
Procure maneiras criativas de ajudar as crianças a aprender a valorizar a amabilidade e a generosidade, em detrimento do consumismo. Explique a seu filho que os comerciais são criados para tomar o dinheiro dele. “Esses cinco dólares que estão em seu bolso — é o que eles querem!”. Explique-lhe que o que é realmente importante é ser amável e caridoso quando você está em condição de sê-lo, em vez de acumular coisas de que você não precisa. Considere a possibilidade de fazer seu filho auxiliar um parente idoso, pegue alguns de seus brinquedos para destinar à caridade ou talvez reserve uma parte do dinheiro dele para doá-lo a uma causa que ele escolha.
DETERMINAÇÃO
Andreía é geralmente traduzida em nossa língua como “coragem” ou “determinação”. Esta virtude envolve confiança, amor ao trabalho, capacidade para suportar atribulações e perseverança em coisas que gostaríamos de evitar. Esta passagem em particular ilustra a importância da garra e do trabalho assíduo no provimento de seu próprio sustento:
Falando de modo geral, se alguém, a um só tempo, é devotado à vida da filosofia e lavra a terra, julgarei esse modo de vida incomparável e a ele não preferirei nenhum outro meio de sustento. Pois, não é “viver em conformidade ainda maior com a natureza” retirar seu próprio sustento diretamente da terra, que é nutriz e mãe de todos nós, em vez de obtê-lo de outra fonte? Não convém mais à vida de um homem morar no campo do que acomodar-se à toa nas cidades, como os sofistas? Quem dirá que não é mais saudável viver da porta para fora do que evitar o ar livre e o calor do sol? Diga-me: você acha que é mais adequado para um homem livre prover-se a si, por força do próprio trabalho, das necessidades da vida ou recebê-las das mãos de outrem? [Diatribes, XI]
Você pode encorajar a determinação ao fazer seu filho ajudá-lo com alguma atividade compatível com a idade dele, como cozinhar, cumprir tarefas domésticas, mexer com plantas ou trabalhar no quintal. As crianças podem ganhar confiança ao adquirirem essas habilidades essenciais. Mexer com plantas é particularmente educativo para elas, visto que envolve o adiamento da gratificação e, ocasionalmente, a lição de que o trabalho duro nem sempre é recompensado. A determinação é requerida quando se está semeando, regando e cultivando as plantas, e somente no fim é que você aproveitará a comida que produziu. Enfatize a importância de se trabalhar com aplicação para cuidar de si e do seu lar e de se perseverar em meio a reveses e frustrações que surgirem. As crianças têm de ser elogiadas por seus êxitos, mas também por esforços conscienciosos que não foram bem sucedidos.
MODERAÇÃO
Como outros estoicos, Musônio Rufo valorizava a moderação, ou sōphrosúnē em grego antigo. A sōphrosúnē consiste em amainar suas emoções, não comer demais, ser frugal e comportar-se com certo equilíbrio e gravitas. A moderação tem a ver com saber a média nas suas atividades, por assim dizer. Quanto às emoções, Musônio Rufo afirma:
Palavras de aconselhamento e admoestação oferecidas quando as emoções de uma pessoa estão em seu ponto mais alto e transbordante pouco ou nada adiantam. [Fragmento nº 36]
As crianças são pessoas pequenas com emoções grandes e necessitam de ajuda para lidar com elas até serem maduras o bastante a fim de exercer o autodomínio. Os pais devem esperar até que as crianças fiquem calmas para dar-lhes correção ou auxiliá-las a navegar por entre fortes reações emocionais. Sugira à criança respirar fundo, ou talvez dê um tempo até ela poder discutir a situação com calma. Pergunte a seu filho se, por exemplo, a reação zangada dele foi particularmente útil. Terão as palavras dele sido daninhas para alguém? Elas geraram uma decisão boa? O que a criança pode fazer de diferente no futuro? Se você, como pai ou mãe, teve reação além da conta ou se zangou, peça desculpas e proponha-se a fazer melhor da próxima vez.
Musônio Rufo também aconselhava a temperança relativamente à comida, perguntando:
Que é a gula senão intemperança nos assuntos de nutrição, levando os homens a preferir, quanto à comida, o que é prazeroso ao que é benéfico?… exercitar a moderação e o decoro no comer, demonstrando o autocontrole neste ponto antes de tudo, não é coisa fácil de fazer, mas algo que requer muita atenção e prática. [Diatribes, XVIIIb]
Ensine a seus filhos que comer é precipuamente uma questão de nutrição, mais do que de prazer. Você só tem um corpo, e é importante mantê-lo com boa saúde. Converse com eles sobre o porquê de certos alimentos serem saudáveis e repletos de nutrientes e o porquê de outros, principalmente as comidas açucaradas e processadas, não o serem. Uma guloseima de vez em quando é aceitável, mas precisamos encorajar as crianças a comer uma variedade de comidas naturais e saudáveis, em vez de habituá-las a empanturrar-se com porcarias. Você deve dar o exemplo de uma alimentação saudável por si próprio.
SABEDORIA
A última virtude estoica é a phrónēsis — “prudência” ou “sabedoria”. A sabedoria costuma ser definida como um caráter excelente, juízo reto, propósito nobre, inventividade e aceitação das coisas que não conseguimos controlar. Musônio Rufo sugere que a natureza de cada pessoa deve dar forma a um senso peculiar de propósito nobre, e que devemos viver segundo um método para desenvolver a excelência:
O melhor viático para a velhice… aquele que é melhor também para a juventude, a saber, viver segundo um método e em conformidade com a natureza. Você entenderia melhor o que isso quer dizer caso percebesse que a humanidade não foi criada para o prazer. (…) Pois a natureza de cada um guia-o na direção de sua excelência própria; por conseguinte, não é razoável supor que, quando um homem viva uma vida de prazeres, ele esteja vivendo em conformidade com a natureza, o que se suporia melhor quando ele vivesse uma vida de virtude. Com efeito, portanto, ele é enaltecido com justiça e pode orgulhar-se de si, sendo otimista e corajoso, características a que se seguem, necessariamente, o contentamento e a alegria serena. [Diatribes, XVII]
O método a que Musônio Rufo se refere pode ser a prática estoica da meditação retrospectiva noturna, a qual envolve a reflexão sobre o que você fez de bom ou de ruim em cada dia e a imaginação sobre o modo de melhorar sua conduta dali por diante. À mesa do jantar ou à hora de dormir, converse com seu filho sobre como foi o dia para vocês dois, discutindo o que deu certo e o que deu errado. Vocês perderam alguma oportunidade de fazer algo positivo pelo seu crescimento enquanto pessoas? Útil tanto para os filhos como para os pais é refletir sobre sua própria conduta, fazer comentários sobre suas falhas pessoais e revirar o cérebro em busca de soluções que visem ao aprimoramento de si. Sabedoria não é algo que se adquira do dia para a noite: estamos sempre nos empenhando na direção dela.
Pois a filosofia será proveitosa para alguém somente assim: se ele, ao ensinamento sensato, acrescentar uma conduta que com este esteja em harmonia. [Diatribes, I]
Referências:
- Pritchard, M. “Philosophy for Children”. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2002. Acessado em 19 de agosto de 2016; fonte: http://plato.stanford.edu/entries/children/ .
- Lutz, C. Musonius Rufus, the Roman Socrates. Yale Classical Studies 10 3-147, 1947.
- King, C. Musonius Rufus: Lectures and Sayings. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2011.
(*) Leah Goldrick é bacharel em Filosofia e mestre em Ciência da Informação e Biblioteconomia pela Universidade Rutgers. Foi arquivista na Igreja Presbiteriana e atualmente trabalha como bibliotecária em uma instituição voltada para crianças. Vive nos Estados Unidos com o marido e um filho pequeno e mantém o blog "Common Sense Ethics".
Fonte: https://bit.ly/2C238IE
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