Por que ler os estoicos pode ser melhor que contratar um coach. Parte 2
por Donato S. Ferrara,
O sucesso não depende exclusivamente de você
Na primeira parte deste artigo, tratei das vantagens econômicas da leitura atenta e refletida dos antigos estoicos frente às propostas de coaching modernas. Por natureza, estas tendem mais a criar dependência do mentor que dar estímulo à autonomia do indivíduo assistido.
Também delineei, em contraponto, algo que me parece essencial: os estoicos tinham em mente uma educação global do ser humano. Como todo processo educativo, estão aí implicadas as dificuldades inerentes à ignorância humana, com a resistência que sempre oferece.
Uma educação filosófica é algo que leva tempo, tem altos e baixos, não se resolve num piscar de olhos. É menos uma questão de deixar-se “impactar” que de embeber-se e perseverar.
Nesse diapasão, esboço aqui o meu segundo ponto.
2. OS ESTOICOS NÃO ATRIBUEM O SUCESSO APENAS AO INDIVÍDUO
Não é incomum entre os coaches, célebres ou obscuros, o uso livre, às vezes criativo, de noções como a da “lei de atração”, também denominada “poder secreto”.
Simplificando: estamos falando da crença que diz que ter em mente um objetivo bem delimitado, guardado só para si, seria capaz de atrair, sob certas condições, energias universais propícias. Ensinar tais condições é uma das prerrogativas do coaching: é o pulo, financiado, do gato. Todavia, isso costuma consistir em coisas como rituais individuais, repetição de mantras, confecção de amuletos e rememoração periódica do objetivo secreto que a pessoa pôs de si para si.
Resulta disso uma relação afetiva e supersticiosa com as “forças do universo”, com o fito de fazê-las conspirar em favor do sujeito que deseja algo material. Quando enfim ele atingir seu objetivo, poderá dizer que criou em conjunto com o cosmos o bem almejado — ou ainda, para escárnio de quase 900 anos de língua portuguesa, que “cocriou” a coisa.
Uma variação mais assertiva dessa noção, a qual também muitos coaches procuram inculcar em seus seguidores, poderia ser assim resumida: o sucesso é uma escolha. Se você não chega lá, é porque você não foi capaz de escolhê-lo, para início de conversa. Se não “cocriou” nada, é porque não soube pedir nada ao universo. Porque você é um tolo. Um tolo inerte, que não abocanha o que é seu.
Depois desse processo de mentalização, certos coaches insistem na necessidade de agir em conformidade com o que se quer. Quem não arrisca, não petisca etc.
De um ponto de vista prático, se você tem um objetivo mantido em sigilo, ninguém poderá atrapalhar a sua busca particular. Se você o deseja ardentemente, terá mais foco e determinação para persegui-lo. E agindo de maneira menos dispersa, terá mais chances de atingir, por fim, seu objetivo. Por que seria necessário desembolsar fortunas para entender essa lógica de ação da qual o senso comum dá conta plenamente, é algo que me escapa de todo.
Mas o quadro é pior, tendo-se em vista que envolve ilusões metafísicas. As coisas simplesmente não funcionam assim, por atração mental, porque pessoas cheias de positividade e determinação nem sempre têm grandes conquistas: aliás, às vezes se dão muito mal.
Há muita gente que tem foco e otimismo inquebrantáveis trabalhando incansavelmente na periferia de Kinshasa, na Índia rural ou no sertão do nosso Nordeste — gente que até pode vir a melhorar de vida por meio de seu próprio esforço, mas que nunca chegará lá. É um heroísmo anônimo — e de frutos mirrados.
Contudo, este é um artigo em que procuramos contrastar essa proposta de magia mental, tão comum no coaching, a uma filosofia de vida da Antiguidade: o estoicismo. Diferentemente dos coaches do presente, os estoicos não acreditavam que fosse possível distorcer as leis da natureza para fazê-las concorrer com nossos objetivos secretos. Para eles, o que nos punha em sintonia com o cosmos não era a vontade subjetiva, com suas pulsões, mas a racionalidade, o lógos, presente tanto na mente humana quanto no todo.
Marco Aurélio Antonino, imperador de Roma de 161 a 180 e filósofo estoico, exprime-se em diversos pontos de seu diário filosófico-espiritual a esse respeito. Eis um exemplo, simples e belo:
Tudo o que está em sintonia contigo, ó Universo, está em sintonia comigo! Nada que esteja para ti no momento certo me é prematuro ou tardio! Tudo o que as tuas estações trazem, ó Natureza, para mim é fruto! De ti tudo, em ti tudo, para ti tudo. (Meditações, IV, 23)Está claro que podemos compreender o funcionamento do universo (até certo ponto), não dobrá-lo a nosso bel-prazer. Podemos, ainda, ter uma atitude reverente frente a esta totalidade ordenada de que fazemos parte, como se vê em Marco Aurélio. E isso nos leva a um ponto de vista bem diverso do que vige no mundo do coaching.
A maior parte das coisas que a multidão admira reduz-se ao que há de mais vulgar, às coisas que subsistem pela sua constituição ou natureza: pedras, madeiras, figueiras, vinhas, oliveiras. As criaturas um pouco mais instruídas admiram os seres que respiram, por exemplo, carneiros, gado. Os mais esclarecidos ainda admiram os seres dotados de inteligência, não da inteligência universal, mas sim da faculdade que os torna aptos para o exercício das artes ou de qualquer indústria, ou então capazes de possuir muitos escravos. — Mas aquele que venera a alma dotada da razão universal e sociável não quer saber do resto: acima de tudo, esforça-se por conservar a própria alma em disposição e atividade sensatas e sociáveis e por conduzir os semelhantes no mesmo caminho. (idem, VI, 14)“Esse homem era um loser! Ele não pedia ao universo o que era seu por direito! Onde está o exercício de seu ‘poder secreto’?” Bem, ele foi o senhor do Mediterrâneo por 19 anos e, segundo muitos, um dos maiores vultos políticos da história. Tinha poder de fato, não em seu imaginário: algo que ele jamais pediu para si — e que sempre encarou como um dever, quase um fardo.
Para os estoicos, pois, o cosmos age em conformidade com o seu próprio bem, garantido por leis naturais imutáveis, não para satisfazer nossos caprichos consumistas ou sensuais.
É dar-se muita importância crer que uma estrutura de mais de 13 bilhões de anos, com diâmetro de pelo menos 90 bilhões de anos-luz, será afetada por um macete mental (mind hack) que não é lá tão diferente de uma crendice como a do mau-olhado. Há que gastar mesmo muito dinheiro para sufocar em si o senso de realidade e cair nessa esparrela.
E quanto à insistência dos coaches na ação? Não teria ela algo a ver com o já citado dito de Sêneca, da carta XX: “a filosofia… ensina a agir, não a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas leis, de modo que a vida não contradiga as palavras”? Facere docet philosophia, non dicere, certo? Não poderiam os estoicos nos ensinar o foco e a resiliência, por exemplo?
Podem, claro. Mas é preciso considerar que foco e resiliência na obtenção dos chamados “bens intermediários” (riqueza, sucesso, poder, fama etc.) — ou, mais estoicamente, “indiferentes preferíveis” — só têm validade quando não criam obstáculos ao objetivo principal da filosofia estoica: a busca da excelência ou virtude (ἀρετή, areté), que é o “bem supremo”. Aqueles são acréscimos que podem tornar a vida mais cômoda, não o centro da existência. Por isso, não dizem nada acerca do caráter de uma pessoa.
Há, porém, algo mais, referido por Cícero em seu tratado Dos fins (45 a.C.). Na conversação imaginária que ele ali tem com seu amigo Catão, o Jovem, que o instruía no estoicismo, lemos o seguinte:
Imaginemos um homem cujo propósito consiste em atingir um certo alvo com uma lança, ou com uma flecha; assim como dizemos que há, entre os bens, um que é o bem supremo, assim esse homem tem por finalidade fazer todos os gestos necessários para atingir o alvo. No nosso exemplo, este homem tem de fazer todos os possíveis por acertar no alvo, todavia o seu propósito último (correspondente ao que chamamos “o bem supremo” da nossa vida) consiste em fazer todos os gestos adequados para atingir o alvo; atingi-lo de fato é, sem dúvida, uma escolha a fazer, mas não um propósito em si mesmo. (Dos fins, III, 22)Trocando em miúdos: você pode escolher fazer todo o possível para alcançar um objetivo, fazer todos os gestos nessa direção, mas isso não garantirá que venha a alcançar o objetivo proposto. E isso porque alguma outra coisa pode intervir na fatura (um ex-padre irlandês meio pirado, por exemplo). Logo, uma atitude filosófica conveniente, nesse caso, é valorizar justamente o ato de preparar-se para atingir o objetivo, de dar o melhor de si nesse sentido executando as ações convenientes, não a consecução do próprio objetivo. A luta pela vitória é totalmente sua, mas não a vitória em si.
Mas, se isso lhe parece um tipo de resignação de fracassado, vejamos como a metáfora do arqueiro quadra bem à vida de um vencedor: Ayrton Senna. Tricampeão de Fórmula 1 em 1988, 1990 e 1991, pela McLaren, fechou contrato com a Williams-Renault, que então se impunha como a melhor escuderia. Desnecessário dizer que nunca faltaram a Senna todos os atributos de verdadeiro campeão: além de habilidade, motivação, ousadia, foco etc. Era, no mais, carismático.
No início da temporada de 1994, pilotando o FW16, um modelo instável, Senna não estava obtendo, na Williams, os mesmos bons resultados de sempre. Faltavam-lhe motivação, ousadia, foco? Evidente que não. Como o arqueiro de Catão e Cícero, ele fazia todos os gestos necessários para a consecução de seu objetivo — a vitória — , mas não estava se dando bem, não atingia o alvo. Nem por isso, contudo, devemos deixar de valorizar o esforço de Senna nos três Grandes Prêmios que disputou, mas não venceu, naquele ano, até a sua morte. Era o mesmo campeão de sempre.
No GP de San Marino, em Ímola, sua conduta vencedora permaneceu a mesma. Arriscando-se sempre muito, ele buscava a vitória: gestos necessários para acertar o alvo. No entanto, interveio um erro humano ou uma falha técnica, se não uma conjunção de ambos: Senna bate forte contra o mureta da curva Tamburello. Falece, como se sabe, ali mesmo. Sua atitude de vencedor jamais o abandonou, mas algo mais forte do que ele interveio.
Senna sabia-se um homem de sorte, como deixou claro em muitas declarações. Sabia que era um campeão não apenas por seus dons pessoais, mas porque portas lhe tinham sido abertas por outrem. Exatamente por isso, sua irmã, Viviane Senna, fundou uma organização para dar oportunidades a alunos carentes: o Instituto Ayrton Senna.
Mais Senna e mais Sêneca, portanto — e menos sortilégios.
Fonte: http://bit.ly/2NzK3kJ
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